RECUSA DE ATENDIMENTO POR AUSÊNCIA DE EQUIPAMENTO DE PROTEÇÃO INDIVIDUAL (EPI)

RECUSA DE ATENDIMENTO POR AUSÊNCIA DE EQUIPAMENTO DE PROTEÇÃO INDIVIDUAL (EPI)

 

 

 

Com a continua propagação do coronavírus e a crescente demanda e escassez dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI), a ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária – publicou a NOTA TÉCNICA GVIMS/GGTES/ANVISA Nº 04/2020[1] que orienta os profissionais da área da saúde a utilizarem mascaras N95 ou equivalentes por período maior que o indicado pelos fabricantes, não englobando as vencidas ou que não preservarem sua integridade.

A medida foi realizada pelo fato de haver baixo estoque nas entidades prestadoras de serviços de atenção à saúde, bem como no mercado mundial.

Diante do tema, pretende-se averiguar eventual responsabilidade dos profissionais da saúde em caso de recusa de atendimento pela ausência do EPI quando da indispensabilidade destes para determinados atos de seu labor. O profissional poderia se recusar a prestar o atendimento? Haveria responsabilidade?

Imperioso destacar que o tema abarca muitas questões doutrinárias, jurisprudenciais e será analisado sob uma ótica mais legalista, não se pretende aqui o esgotamento de toda a discussão.

Antes de adentrar nas possibilidades, devemos esclarecer alguns pontos da atuação que os profissionais da área da saúde capacitados para tanto possuem. O chamado ato médico pode ser divido em duas esferas distintas, sendo o ato médico genérico, ato médico específico ou ato médico stricto sensu.

Genival Veloso de França delimita da seguinte forma:

Deve-se entender como ato médico genérico todo esforço traduzido de forma organizada e tecnicamente reconhecido em favor da qualidade da vida e da saúde do ser humano e da coletividade. Assim, não é apenas aquilo que somente o médico pode realizar, mas também o que é da competência de outros profissionais da mesma área que podem e devem fazer em favor deste projeto, ou o que pressupõe, pelo menos, a supervisão e a responsabilidade do médico.[2].

Já quanto ao ato específico, ele o traduz como sendo aquele que estão inseridos nas normas técnicas de capacitação de cada profissional. Vejamos:

Este ato médico específico está delimitado por um núcleo conceitual que inclui a propedêutica e terapêutica médicas como atividades estritamente privativas do médico. Exemplo: atestar óbito, praticar uma anestesia ou proceder a uma laparotomia. Deste modo, o ato médico específico seria o conjunto de práticas e de ensinamentos exercido ou supervisionado de forma exclusiva elos que estão legalmente habilitados para o exercício da profissão médica e aceito e recomendado pelas instituições responsáveis ela fiscalização da medicina, pelas instituições médicas científicas e pelos aparelhos formadores desta profissão.[3].

A Constituição Federal da República[4] em seu artigo 5º, inciso II, dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”. Em seu artigo 6º, caput, que são diretos sociais “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”.

Diante disso, a saúde se traduz como direito fundamental e tem seus contornos traçados pela Lei nº 8.080/90.  Contudo, mesmo a par do direito posto, não se pode negar que a Constituição Federal estabelece a fundamentalidade do direito à saúde, mas, em contrapartida confere ao próprio Estado o dever e atribuição de promover conjunto de ações e serviços públicos que são indispensáveis ao próprio direito da saúde.

Desta feita, surge a constatação que o direito é positivo, mas são imprescindíveis as efetivas e concretas ações governamentais aptas à observância para sua eficácia, ou seja, a sociedade depende do Estado e o problema surge quando da falta deste último.

O Código Civil protege os direitos da personalidade, englobando tanto a vida quanto à saúde (integridade física) em seu artigo 12, caput, “Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.”; e em seu artigo 15, caput, “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.” [5].

A responsabilidade civil é alicerçada na premissa de conduta (ato médico, in casu), nexo e dano. A conduta é o imperativo, a ação ou omissão realizada, o nexo é o liame que conduz ao resultado que, sendo causador de dano, estaria presente determinada obrigação de repará-lo. A responsabilidade do profissional da saúde deverá sempre ser analisada sob a ótica subjetiva, devendo ser efetivamente comprovado concomitantemente com os requisitos acima e nunca os presumindo.

Para que a conduta (ato médico) seja reprimida e adentre nos meandros da responsabilização civil é preciso que esta seja ilícita. Pedro H. C. Fonseca e Maria Paula Fonseca nos ensinam:

Dentro dos fatos jurídicos é possível que haja aqueles que caminham paralelamente ao direito, sem ofendê-lo ou violá-lo – os atos lícitos – e aqueles que ultrapassam o limite permitido pelo justo, violando a Lei – os atos ilícitos. Portanto, um ato ilícito é um fato jurídico ilícito. Os fatos ilícitos são contrários ao ordenamento jurídico, isto é, são considerados antijurídicos. Assim, o ato ilícito, espécie de fato jurídico, é todo ato, conduzido e canalizado contra o direito, permitindo imputação àquele que o praticou. Nesse sentido, a tutela repressiva da responsabilidade civil será levantada diante de um ato ilícito.[6].

Salvo raras hipóteses a responsabilidade do Médico é pessoal e subjetiva, de forma que responde pelos atos lesivos aos pacientes, por ação ou omissão culposa, nos casos que seja identificada imperícia, imprudência ou negligência. A responsabilidade médica pode ser jurídica, civil, penal e administrativa no âmbito dos Conselhos de Medicina.

A conduta tipicamente expressada e deveras reprimida na seara cível é observada majoritariamente na forma culposa, ou seja, por negligência, imprudência ou imperícia, conforme artigos 186, 187 e 951 do Código Civil[7]. Art. 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”; Art. 187: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”. Art. 951: “O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.”.

A grosso modo podemos distinguir que a negligência seria a falta de cuidado, a imprudência a ausência de zelo ou precaução e a imperícia a falta de habilidade específica para exercer uma atividade técnica ou científica. O ponto de atenção é analisarmos se a eventual recusa no atendimento formaria o conjunto necessário para impor uma responsabilização ao profissional.

Dentre as ditas excludentes da responsabilidade civil, podemos observar algumas que se amoldariam no objeto central do presente estudo. Importante observar que qualquer das circunstâncias abaixo delineadas que excluírem a existência dos elementos já elencados, excluirá, também, a eventual responsabilidade que poderia advir.

O artigo 188 do Código Civil[8] prescreve que não constituem atos ilícitos “I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.”. O artigo 393[9] que “Art. 393 O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”.

Por sua vez o Código Penal[10] em seu artigo 23, inciso III, discorre que não há crime quando o agente pratica o fato “em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.”. Quando trata dos crimes contra a pessoa na parte especial, Título I, prevê a omissão de socorro em seu artigo 135 que imputa crime a quem “Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.”.

Da leitura do disposto vemos que há a expressão quando é possível fazê-lo sem risco pessoal, ou seja, mesmo que o fato seja tipificado como crime, o agente o pratica para proteger outro bem jurídico, sua vida e integridade física decorrente de seu direito inegável à saúde.

O elemento objetivo descrito no crime de omissão de socorro é a vontade livre e consciente de não prestar a assistência, mas in casu, estamos levando em consideração apenas que o profissional não possui os meios adequados e imprescindíveis para fazê-lo, possuindo a vontade de atender o necessitado e dar-lhe a assistência devida.

Do dever de assistência, Genival Veloso de França discorre o seguinte:

Essa assistência imposta pelo nosso diploma legal deve ser prestada não apenas quando as circunstancias exigirem, mas também quando for possível realiza-la sem risco pessoal e sem violar interesses maiores. Por outro lado, é necessário que a alegação da não prestação de socorro não se prenda a pretextos fúteis ou pequenos danos. É claro que a lei não poderia exigir que sempre diante de um periclitante um homem se transformasse em herói ou bom samaritano, a ponto de sacrificar-se pelo seu próximo. Entretanto, achamos que existem profissões que pelo seu próprio caráter acarretam a exigência de determinados riscos. Assim é o salva-vidas, o policial e o soldado do fogo. O médico, pelo seu sentimento ético e pela sua consciência impõem, pois o fundamento de sua profissão é socorrer seus semelhantes.[11].

Em consonância com a Constituição Federal, Código Civil e Código Penal, o Código de Ética Médica no Capítulo II – Direitos dos Médicos, inciso IV e V prevê que é direito do médico: “IV – Recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar a própria saúde ou a do paciente, bem como a dos demais profissionais. Nesse caso, comunicará com justificativa e maior brevidade sua decisão ao diretor técnico, ao Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição e à Comissão de Ética da instituição, quando houver.”; “V – Suspender suas atividades, individualmente ou coletivamente, quando a instituição pública ou privada para a qual trabalhe não oferecer condições adequadas para o exercício profissional ou não o remunerar digna e justamente, ressalvadas as situações de urgência e emergência, devendo comunicar imediatamente sua decisão ao Conselho Regional de Medicina.”.

Já no artigo 12 do Capítulo III – Responsabilidade Profissional – prevê que é vedado ao médico “Art. 12. Deixar de esclarecer o trabalhador sobre as condições de trabalho que ponham em risco sua saúde, devendo comunicar o fato aos empregadores responsáveis.”.

Da interpretação de toda a fundamentação e dispositivos até aqui elencados, resta cristalino que o médico deve ter condições adequadas para o exercício do seu labor e que, na falta destas, deverá tomar providências ativas, podendo, por certo, minimizar a sua atuação ou ficar impossibilitado de fazê-la. O que se tem de evitar são as desproporcionalidades e excessos que não podem ocorrer por parte do profissional, ou seja, cada situação demandará um conjunto analítico e probatório elaborado, devendo, ainda, ter em mente que o objetivo central é o bem-estar do paciente.

A Resolução CFM Nº 2147/2016 delimita e estabelece as normas sobre a responsabilidade, atribuições e direitos dos diretores técnicos, diretores clínicos e chefias de serviços, “Art. 1º A prestação de assistência médica e a garantia das condições técnicas de atendimento nas instituições públicas ou privadas são de responsabilidade do diretor técnico e do diretor clínico, os quais, no âmbito de suas respectivas atribuições, responderão perante o Conselho Regional de Medicina.”.

Como deveres da Direção Técnica, o artigo 2º, inciso II, IX e X impõe “II) Assegurar condições dignas de trabalho e os meios indispensáveis à prática médica, visando ao melhor desempenho do corpo clínico e dos demais profissionais de saúde, em benefício da população, sendo responsável por faltas éticas decorrentes de deficiências materiais, instrumentais e técnicas da instituição; (…) IX) Assegurar que o abastecimento de produtos e insumos de quaisquer natureza seja adequado ao suprimento do consumo do estabelecimento assistencial, inclusive alimentos e produtos farmacêuticos, conforme padronização da instituição; X) Pelo respeito aos protocolos e diretrizes clínicas baseados em evidências científicas;”.

Já quanto aos deveres da Direção Clínica o artigo 6º, inciso II e IV dispõe que são “II) Supervisionar a execução das atividades de assistência médica da instituição, comunicando ao diretor técnico para que tome as providências cabíveis quanto às condições de funcionamento de aparelhagem e equipamentos, bem como o abastecimento de medicamentos e insumos necessário ao fiel cumprimento das prescrições clínicas, intervenções cirúrgicas, aplicação de técnicas de reabilitação e realização de atos periciais quando este estiver inserido em estabelecimento assistencial médico; (…) IV) Supervisionar a efetiva realização do ato médico, da compatibilidade dos recursos disponíveis, da garantia das prerrogativas do profissional médico e da garantia de assistência disponível aos pacientes;”.

Deste modo, em caso de indisponibilidade de EPI para o profissional, este tem o dever de comunicar imediatamente a Diretoria Clínica e Técnica do estabelecimento ou, na falta destes, a Chefia, para que providenciem o material indispensável em certos casos, sob pena de não o fazendo, responder diretamente pela conduta. Outro ponto importante é que os profissionais que passarem por tal situação atualizem e relatem o motivo da impossibilidade de atendimento naquele momento em prontuário.

 

Considerações finais

Em razão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) ter atualizado sua NOTA TÉCNICA GVIMS/GGTES/ANVISA Nº 04/2020 que impõe o dever de utilização de EPI pelo profissional da saúde, delimitando-o nas diversas formas de atendimentos e procedimentos, bem como a RESOLUÇÃO CREMERJ nº 304 /2020 e RESOLUÇÃO CRM-PA n° 001/2020, que delimitam a necessidade do uso e disponibilidade dos EPI’s no combate o coronavírus, o tema ainda deve ser debatido sobre diversos aspectos.

O CFM já manifestou por meio de nota[12] a indispensabilidade e exigência de disponibilidade dos EPI’s, bem como já reforçou[13] o uso racional desses insumos e as condições que cada profissional deverá observar em cada etapa do atendimento[14].

Também tratou o CFM de disponibilizar um canal de atendimento exclusivo para que sejam realizadas as denúncias em caso de ausência de condições para o exercício seguro da atividade profissional, que poderá ser acessado em: https://sistemas.cfm.org.br/fiscalizacaocovid/.

O profissional da área deve sempre se manter são e ciente de que seu labor traz riscos inerentes à própria profissão, contudo, o direito à saúde é universal e subjetivo, sendo necessário não só apenas a atuação do profissional, mas sim de uma estrutura política pública que propiciem condições por vezes indispensáveis e dignas para atingir o fim a que se destinam.

O que se espera é que o profissional sempre aja de maneira ativa para evitar danos, ou seja, com dedicação, diligência e prudência, evitando assim os excessos de ação ou omissão que vão de encontro com a legislação e trarão responsabilidade tanto na ótica civil quanto na penal e ética.

[1] http://portal.anvisa.gov.br/documents/33852/271858/Nota+T%C3%A9cnica+n+04-2020+GVIMS-GGTES-ANVISA-ATUALIZADA/ab598660-3de4-4f14-8e6f-b9341c196b28

[2] FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico, 15 ed. Rio de Janeiro. Forense. 2019. P.71.

[3] Ibidem. P. 72.

[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm

[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

[6] FONSECA, Pedro H. C; FONSECA, Mara de Paula. Direito do Médico – De acordo com o Novo CPC, 1 reimp. Belo Horizonte. D’Plácido. 2018. P.118.

[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

[8] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

[9] Ibidem

[10] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm

[11] FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico, 15 ed. Rio de Janeiro. Forense. 2019. P 245.

[12] http://portal.cfm.org.br/images/PDF/nota-covid-19-25032020-final-18h.pdf

[13] http://portal.cfm.org.br/images/PDF/covid-19cfm.pdf

[14] http://portal.cfm.org.br/images/PDF/nota_epi.pdf

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Prado Rodrigues

Lucas Tadeu Prado Rodrigues, advogado e professor.

Bacharel em Direito pela PUC Minas, Mestre em Direito Empresarial, Especialista em Advocacia Tributária e em Direito Previdenciário